domingo, 29 de abril de 2012

Setúbal, 29 de Abril

Pesadelo
Olho para o céu pela janela do meu quarto e vejo a chuva cair, como se tu, aí em cima demonstrasses a raiva por entre os trovões e as gotas de chuva que derramam dos teus olhos cor de mar. Toco no vidro da janela, como se este toque me permitisse chegar até ti, como se este toque permitisse pedir-te desculpa... Vejo-te lá no céu de cabeça baixa e com os teus enormes cabelos lisos a tapar-te a cara, como quando fazias para copiar nos testes... Toco-te, mas quando levantas a cabeça, apercebo-me que essa sou eu, e  este vidro se tornou no espelho da minha alma, um espelho partido e repleto de culpa.
Acordo... repiro... não passou de um pesadelo.


Leonor,

sexta-feira, 2 de março de 2012

Setúbal, 2 de Março

Sinto-me vazia. A culpa, parece que em vez de diminuir ao longo do tempo, vai aumentado com os olhares dos outros. Não me interressa o que os outros pensam, porque eu sei bem o significado que a nossa amizade tinha, apenas os olhares dos outros me fazem realmente perceber que a culpa foi minha. Eu não queria, não queria que nada disto acontecesse, se eu conseguisse fazer recuar no relógio...
As vezes gostaria de poder dizer que isto não passou de um pesadelo ou até mesmo que estamos num conto infantil, que o tempo recoou e que tu não morres-te; mas na verdade tu foste embora e agora és apenas um pedaço do céu azul.

Leonor,

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Setúbal, 5 de Fevereiro

           Caminho cada vez mais depressa para entrar rapidamente no bloco de aulas, sempre de cabeça baixa. Sei o que toda a escola pensa, e não os culpo. Sei que pensam que te ignorei de todas as vezes que me pediste ajuda naquelas cartas, mas eu juro que nunca as li, até porque passou um ano depois da tua morte e só depois soube da existência das cartas. Eu sei que ninguém acredita em mim, e até mesmo tu, aí em cima, deves duvidar; nem a minha própria mãe acredita, eu vejo nos seus olhos a desilusão que sente por mim. Caminho cada vez mais depressa, assim que vejo pessoas com o jornal na mão e a cochicharem sobre mim. Para além da culpa que já sentia, agora, ainda sinto a culpa que Setúbal inteira exerce sobre mim. Entro na casa de banho, e tranco de imediato a porta, caio sobre o chão e desato a chorar, choro por já não estares presente, choro por mim e choro pela culpa que sinto.
           E este foi o primeiro de muitos dias de sofrimento.


Leonor,

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Setúbal, 9 de Janeiro

Olho-me ao espelho e sou envolvida com um sentimento de culpa. Deixo as cartas caírem sobre o chão húmido e gelado e deixo-me a mim também, como uma folha em pleno outono. Este sentimento é cada vez mais forte que começo a puxar os meus próprios cabelos como meu próprio castigo. Grito... mas este sentimento não desaparece. Não tenho mais a dizer, é como se as tuas palavras me tivessem secado a garganta, é como se o nosso mundo caísse agora, aos meus pés.
                                                                                                                                                          
Leonor,

sábado, 10 de dezembro de 2011

Lisboa, 10 de Dezembro

Preciso cada vez mais de ti Leonor. Sei que te desiludi, sei que te magoei, mas não percebo o porquê de não responderes a todas estas mensagens. Eu mudei, mudei muito, por ti, por mim e por todos os nossos amigos, eu quero que tudo volte a ser como era, quero que voltemos a ser como eramos, eu, tu, a Mafalda e a Rita, mas eu não consigo lutar sem a vossa ajuda, voces são a minha corrente, mas que neste momento está muito fraca.
Por favor amiga, não me deixes aqui caída como uma rocha no fundo do oceano...

Liliana

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Lisboa, 8 de Dezembro

Sinto-me fraca, impotente e incapaz de lutar contra mim própria e contra a pessoa que me transformei. Sinto-me como um sedimento caído no fundo do oceano, que não tem força para regressar à superfície. Talvez só precise de mais corrente e de uma onda que arrebente na costa de uma praia que me faça voltar ao sítio aonde pertenço, de onde fui erodida, meteorizada e transportada. Eu sou como uma rocha a tentar realizar o seu ciclo, mas é mais fácil uma rocha magmática transformar-se em sedimentos, do que os sedimentos voltarem a transformar-se numa rocha magmática.
Liliana

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Lisboa, 28 de Outubro

Quando acordei, já me encontrava no hospital, rodeada por médicos e enfermeiros. Não tinha noção do tempo, lembrava-me apenas do local em que me encontrava antes de desmaiar, podiam já ter passado horas ou até mesmo dias, mas era como se o tempo parasse, e clicasse agora no play.
Ainda a tentar voltar à minha racionalidade total, tentava ouvir ao longe, o que o médico dizia, e quando me apercebi, a conversa era entre a minha mãe, um médico e um psicólogo, contudo a conversa terminou e não percebi do que se tratava e muito menos porque é que o psicólogo estava incluído nela.
Mais tarde, os três caminharam até junto da minha cama, e explicaram o que acontecera comigo naquele dia. À medida que iam falando, os fantasmas do passado invadiam a minha mente, imagens confusas e desfocadas eram libertadas ao longo do meu pensamento, episódios na minha vida estavam a ser revividos desde o inicio da minha bulimia até ao ponto que ela me destrói. Sentia-me incapaz de pronunciar uma simples palavra e quando voltei a focar as faces dos médicos e da minha mãe, apenas via as lágrimas a escorrerem pela minha face. As lágrimas de uma bulimica e agora de uma anoréctica .
Liliana